Cada osso, tendão e músculo do seu corpo doía. Os olhos lacrimejavam e as narinas ardiam com um odor putrefato, uma mistura de enxofre e de outras excrescências sulfúreas. Todo o lugar estava coberto de uma névoa densa que limitava muito o senso de direção. E que som ensurdecedor era aquele? Parecia choro e ranger de dentes que fazia cada pelo de seu corpo ficar eriçado. Se ele pudesse descrever a situação com uma palavra, a palavra seria aflição.
Ele caminhava, a muito custo, hora e outra encontrava formas que lembravam o que um dia foram homens, gritando em desespero, chorando, rangendo os dentes. Alguns rasgavam a própria pele, deixando o espectador mais conturbado do que já estava.
E o mais perturbador era a falta de lembranças. Que tipo de lugar era aquele, o que diabos estava fazendo ali? E pior de tudo: Quem era ele?
O coração batia em ritmo acelerado, os globos oculares pareciam bailar um tango portenho de tamanha inquietude, porém não encontravam nenhum traço no horizonte, nenhuma árvore retorcida, nem sequer uma pedra que fosse familiar. Isso era desesperante.
Não sabia onde estava, não lembrava seu nome, mas uma coisa o incomodava muito, uma coisa lhe faltava. Olhou pro céu em busca Dela, mas nada encontrou. A linda Senhora Lua não estava no céu pra abençoar os passos. Ele se pegou sorrindo, pelo menos uma lembrança voltou à mente, lembrara de alguma coisa afinal.
Mas por que essa atração pela Lua? Não sabia explicar. Continuou andando, com as feridas latejando.
Ao longe enxergou uma coisa que trouxe ao menos um pouco de alívio. Viu bem ao longe um ponto de luz, que o atraía. Se arrastava, literalmente, se arrastava até o ponto de luz.
Depois de horas ele chegou ao único local que tinha luz, mas era uma luz pesada, uma luz que queimava. O local iluminado era um salão com uma grande porta, o piso e as paredes eram cobertos de mármore polido escuro, o que contrastava com o ambiente ao redor. Ao fundo jazia um trono, e uma figura sentada o deixou boquiaberto. Era a mulher mais linda que ele já tinha visto em toda sua vida, não se lembrava de ter visto nenhum outra, mas ela era exuberante. Os cabelos dela eram vermelhos como o fogo crepitante, sua pele alva como a neve e suave com a Lua. Seu olhar era a coisa que mais chamava atenção, era profundo como o mais denso dos oceanos e parecia olhar pro mais fundo da alma.
Ela usava um vestido branco cheio de rendas e pedras brancas e parecia voar com o vento, mas nem sequer uma brisa pairava no local.
- O que você está fazendo aqui Luiz? - Disse a senhora de branco. - Aqui não é o seu lugar.
- Quem é você, Luiz é meu nome? É bom saber de alguma coisa de mim mesmo. - Disse Luiz, já não tão conturbado.
- Eu sou Rainha Agnes, a Senhora do Submundo, todas as almas desencarnadas são minha posse.
- Seu rosto me é muito familiar, minha senhora, se é assim que eu devo chamar - Luiz dizia enquanto tentava ajeitar sua postura, e suas feições não negavam a dor.
Agnes, Rainha Agnes olhava pra ele com pesar.
- Eu vejo que seu corpo está martirizado pela descida ao submundo, eu posso aliviar sua dor, mas aqui embaixo tudo é em forma de dualidade. Eu não posso tirar sua dor, sem te dar suas lembranças e não sei se isso vai ser uma opção muito melhor. - Disse a Rainha
Luiz pensou que qualquer coisa seria melhor que a dor que estava sentindo e tomou sua decisão um pouco cedo demais.
- A senhora vai tirar a minha dor e ainda vai trazer minhas lembranças de novo? Isso é melhor do que eu imaginava, eu aceito a sua proposta. - Luiz pensando ter tomado a melhor decisão no momento.
A Rainha branca fez um movimento com as mãos e aos poucos, tudo parecia se aliviar, o corpo não estava mais tenso e os músculos estavam todos relaxados, mas quando ele achou que tudo estava começando a ficar bem, parecia que um ferro em brasa estava queimando seu cérebro. Milhares de cenas se emaranhavam em sua cabeça.
Ele via um monstro de grande porte, decapitando pessoas com uma única patada, arrancando membros à mordidas. Tudo que se ouvia eram rugidos estrondosos e gritos de medo e dor.
Sempre acabava parecido, um rio de sangue banhando o chão e pedaços humanos jogados depois que o monstro se fartava. A ultima cena foi a mais temorosa. Luiz via uma mulher linda, de cabelos vermelhos correndo do monstro. Correndo em vão, pois o monstro lobisomem pulou por sobre a mulher e virou no ar, caindo em frente dela. O focinho estava grudado no rosto da mulher, e nesta hora Luiz teve um espasmo involuntário, a mulher era Agnes, a Rainha do submundo. A respiração quente do monstro incomodava Agnes e a saliva espessa empapava em seus cabelos. Foi tudo muito breve, com uma única mordida a sua vida foi tomada. Agnes não pertencia mais ao mundo dos vivos.
Agora Luiz estava de pé, seus olhos ardiam de tantas lágrimas.
Agnes o olhava de um jeito austero e não demonstrava nenhuma emoção.
Luiz queria abraçá-la, beijá-la, mas algo o impedia, não sabia por que, tinha que ficar parado onde estava.
- Eu te disse que poderia não ser uma opção muito melhor. - Disse Agnes, ríspida.
- Como? Eu quero dizer, como tudo isso aconteceu? Como você se tornou rainha desse lugar?
- As coisas acontecem um pouco diferente aqui em baixo, Luiz. O tempo aqui passa muito mais devagar. Eu vaguei como você, vaguei por um tempo que eu não sei quanto foi. As dores no corpo são horríveis, não são? Sem contar a falta de memória! - Luiz viu um sorriso no canto do lábio de Agnes - Mas um dia um homem com túnica escura me acolheu e me disse que ia me fazer ficar melhor, eu simplesmente me deixei levar, não sabia o que fazer.Ele tirou minha dor e me deu minhas memórias de volta, como eu fiz contigo. Ele tentava me consolar, mas era em vão, eu fiquei reclusa por vários dias. Um dia ele falou que você tinha seguido sua vida, encontrado outra e que nunca mais iria te ver. Chorei por vários dias, Luiz. Um dia eu me perguntei que lugar era aquele e quem era aquele homem. Ele me disse que era Hades, e queria me fazer sua esposa nos tempos de primavera enquanto Perséfone estivesse com sua sogra Deméter. Luiz, eu tinha perdido tudo, tinha perdido você. O senhor do submundo me ofereceu uma oferta de recomeço e eu aceitei, mas o que você está fazendo aqui, você não tinha seguido sua vida?
- Eu não iria conseguir viver sem você ao meu lado, meu amor, e quando percebi que você estava morta eu tirei minha própria vida. Agora estou aqui.
Uma lágrima desceu pela face de Agnes, que percebeu que nunca mais poderia se unir novamente com Luiz. Ela tinha firmado um pacto com Hades e não poderia voltar atrás. Um estrondo se abateu no piso de mármore. Um livro grande e pesado caiu aos pés de Agnes.
- O livro das sentenças. - Disse Agnes.
- O que você é isso? - Perguntou ele.
- As almas quando descem pra cá são levadas à um dos 3 juízes, que indicam o local que a alma deve seguir e julga a sentença, mas eu não entendo por que sua alma veio à mim. Creio que o Lorde Hades quer que eu te julgue.
Ele olhou nos fundos dos olhos de Agnes, apreensivo. Ela abriu com cuidado o livro em branco, e a única página escrita falada da sentença de Luiz.
- Luiz, - Disse ela com pesar nas palavras. - Você carregava em vida a maldição do lobisomem, você era um filho da Lua. Você foi um suicida, mas parece que nenhum dos círculos dos infernos tem espaço pra você. Existem outros desgraçados como você lá em cima, outros amaldiçoados. Alguns carregam maldições que nem eu ouso pronunciar. Você foi fadado a voltar. Sua alma não vai descansar até que você cumpra sua sentença.
- O que você quer dizer? - Perguntou Luiz, aflito.
- Lá em cima existem sugadores de sangue, piores que você. Eles matam por prazer, só pra ver o sangue jorrar. Eles se alimentam com sangue humano e não podem ver a face do Rei Sol. Você vai se tornar um caçador dessas criaturas. Enquanto houver um deles lá em cima, você não vai poder descansar.
O peito de Luiz queimava, e quando ele olhou viu uma marca queimando e formando uma figura.
Agnes, por fim, olhava bem nos olhos de Luiz.
- Como eu te disse aqui em baixo tudo funciona em dualidade.Você recebeu a marca de Cérbero, a marca anula a possessão da Lua sobre você, agora você pode se transformar a sua vontade. Você vai ser um caçador. E sua presa são as Crianças da Noite.